Após ‘boom’ na pandemia, crédito deve desacelerar

Expectativa do BC e de bancos é que saldo de empréstimos avance cerca de 8% em 2023, sob efeito de juros altos e inadimplência

Depois de três anos de crescimento forte na pandemia, de mais de 15% ao ano, o crédito no sistema bancário deve finalmente esfriar e avançar a um ritmo de cerca de 8% em 2023. A desaceleração é efeito do aumento das taxas de juros e da inadimplência, que encarecem as operações e aumentam o risco para as instituições financeiras.

A persistência da inflação reforça esse cenário. O IPCA de dezembro, de 0,62%, veio acima do esperado. Ao mesmo tempo, as projeções inflacionárias para este ano e o próximo estão em alta, refletindo as incertezas sobre a questão fiscal sob o novo governo. A inflação aumenta o volume nominal do crédito, mas reduz a renda disponível da população – e pode manter a Selic elevada por mais tempo do que se previa.

Por enquanto, o que está nas projeções dos bancos é que o índice de operações em atraso subirá mais um pouco ao longo dos próximos meses e se estabilizará no segundo semestre. Essa leitura pode mudar caso o ambiente macroeconômico se mostre mais difícil. Outro fator de dúvida é se os bancos públicos aumentarão os desembolsos no governo do PT.

Em janeiro de 2020, ou seja, antes da chegada do coronavírus ao país, o estoque de crédito era de R$ 3,463 trilhões. Em novembro do ano passado, dado mais recente disponível, o saldo estava em R$ 5,264 trilhões. Houve uma expansão de R$ 1,8 trilhão, ou 52%, em praticamente três anos. Como proporção do PIB, o crédito bancário passou de 47,5% para o nível recorde de 53,8%.

A projeção do Banco Central (BC) é que o crédito tenha se expandido 15,1% em 2022 e desacelere para 8,3% neste ano. Pesquisa da Febraban junto aos bancos vai na mesma linha e estima crescimento de 8,2%. A desaceleração virá sobretudo da pessoa física. O ritmo desse segmento cairá à metade, para 9%, segundo a autoridade monetária. Na pessoa jurídica, a perda de fôlego esperada é bem menor, de 10,9% para 7,3%.

O BC começou a aumentar a Selic em março de 2021, mas o efeito do aperto monetário sobre o crédito é, segundo economistas, defasado e cumulativo. Ele começou a aparecer mais recentemente nas operações com recursos livres. Agora, com sinais de que o processo de desinflação pode não se dar na velocidade que se esperava, o alívio nos juros talvez seja mais lento também. Além disso, com a inflação elevada e o endividamento das famílias na máxima histórica, a capacidade de pagamento do tomador diminui. Ao mesmo tempo, a inadimplência reduz o apetite dos bancos para concessões.

“O cenário para este ano de desaceleração do crédito é meio inevitável. A economia deve crescer menos e tem a questão dos juros, cujos efeitos mais fortes começam a aparecer de maneira mais significativa”, diz Rubens Sardenberg, diretor de economia, regulação prudencial e riscos da Febraban.

Mesmo assim, o crédito deve ter um crescimento real (descontando a inflação) perto de 3%, “o que não é ruim”, diz o professor de finanças da FGV Rafael Schiozer. Em termos de concessões, a média mensal atual está acima de R$ 500 bilhões, ainda mais alta que o nível pré-pandemia, em torno de R$ 420 bilhões.

O crédito vai depender das condições macroeconômicas. Em especial, da política fiscal. Esta pode influenciar as condições para uma eventual queda dos juros, como se espera para o segundo semestre. “Para PF, ainda temos alguns fatores positivos, como a melhora no mercado de trabalho, provável ganho real nos salários. Mas PJ depende mais da Selic e da atividade econômica. A questão fiscal afeta a política monetária e isso bate direto no custo de captação”, afirma Isabela Tavares, economista da consultoria Tendências.

Outra grande incógnita é qual será o papel dos bancos públicos. A percepção no mercado é que o PT voltará a usar BNDES, Caixa e Banco do Brasil para estimular o crédito. A dúvida é claro em que magnitude. “Há muito receio sobre o que o BNDES vai fazer em relação às grandes empresas. Não está claro como vai ser a diretriz do novo governo com os bancos públicos”, diz Eduardo Lobo, gestor de fundos de crédito da Somma Investimentos. “Não acho que o governo Lula vai repetir os erros de Dilma, houve um exagero com os bancos públicos, não faz o menor sentido. Mas ainda é um mistério”, afirma Schiozer, da FGV.

Ainda que o BNDES não reative a política de “campeões nacionais”, os juros altos podem levar a um certo refluxo do movimento dos últimos anos, quando grandes empresas passaram a acessar mais o mercado de capitais e a depender menos dos bancos. “Pode haver um efeito substituição, com os mercados de capitais não crescendo tanto e isso aparecendo no crédito bancário. Os mercados continuam abertos, mas dependendo de como for o cenário, pode acabar havendo seleção maior de nomes, o que penaliza pequenas e médias empresas”, diz Sardenberg.

O aumento dos juros fez com que a inadimplência tivesse um desempenho pior que o esperado em 2022. Já era previsto que ela avançasse, depois de bater nas mínimas históricas na pandemia, mas o movimento foi além de uma normalização, e o indicador acabou superando o patamar pré-covid. A deterioração foi maior no crédito livre para pessoa física, em especial em linhas como cartão. “É difícil falar que já estamos vendo uma estabilização. Acho que ainda teremos algumas elevações marginais nos próximos meses e talvez uma redução muito gradual a partir do segundo semestre”, diz Tavares, da Tendências.

A inadimplência saiu de 2,3% ao fim de 2021 para 3,1% agora, sendo 1,2% no crédito direcionado e 4,3% no livre. De acordo com Sardenberg, a deterioração tem sido mais forte na baixa renda, que sofre mais com a inflação, e os bancos estão mais cautelosos nas concessões. “Um pedaço grande dessa piora na inadimplência já aconteceu, mas não tudo. Deve subir mais, mas não no mesmo ritmo.”

No segmento de pessoa jurídica, o indicador segue muito baixo e não há sinais de alerta, afirma o diretor da Febraban. “A situação das empresas, em especial as maiores, é bastante tranquila. Ainda assim, po haver alguma deterioração nos indicadores de alavancagem, porque com os juros mais altos a despesa financeira sobe e elas usam mais caixa para pagar serviço da dívida”, afirma Lobo, da Somma.

Algumas questões em aberto podem afetar o setor no curto prazo. Estão em estudo no governo medidas como o fim do saque-aniversário do FGTS e do consignado no Auxílio Brasil, a criação do programa de renegociação de dívidas Desenrola e a retomada do Minha Casa Minha Vida. Também não está claro como ficarão modalidades como Pronampe e Plano Safra. “Essas incertezas acabam afetando a confiança dos agentes e já podem começar a ter algum impacto, mas não muito grande”, diz o gestor.

Para o Citi, dois temas podem ganhar atenção ao longo do ano: mudanças nos impostos e no comportamento dos bancos públicos. “No primeiro, as discussões sobre o fim dos juros sobre o capital próprio (JCP) devem voltar à mesa, mas esperamos algumas compensações que possam levar a um impacto menor nos impostos para os bancos. Em relação aos bancos públicos, não esperamos alteração significativa nas rotas, mas isso pode ser um risco para o setor.”

Os analistas acreditam que a tendência de expansão do crédito em relação ao PIB está em trajetória sustentável. Entretanto, para mudar de patamar e se aproximar do nível de países desenvolvidos, em que o estoque chega a 70%, 80% do PIB, a avaliação é que precisa haver um longo período de juros baixos e estáveis, permitindo concessões com taxas menores e prazos mais longos sem comprometer excessivamente a renda dos tomadores. Mudanças estruturais, como o novo marco de garantias e alterações nas regras de funding do crédito imobiliário, também são apontadas como necessárias. “Para dar um novo salto precisamos de reformas”, afirma Sardenberg.

Fonte: Valor Economico